domingo, 21 de novembro de 2010

Agendar a vida.


"Abro uma página da minha agenda para desmarcar mais uma vez o território de minha liberdade e o dos meus deveres - que é onde ela começa a perder pé. A fantasia não pede licença para se desenrolar: logo vejo uma infinidade de mesas e escrivaninhas, cada uma com sua agenda, nelas a floresta de compromissos mal assombrando alguma trilha estreita para andar e respirar. (Nas folhas desta minha atual, quero abrir entrelinhas para contemplar a árvore em flor diante de minha janela, ou pegar nos braços uma das crianças que povoam esta casa.)

Vejo também agendas quase vazias onde se procura melancolicamente algo para quebrar o sem-sentido da vida: nem uma visita, uma data de aniversário, nenhum afeto nomeado, nem ao menos um pagamento nesses dias que parecem um deserto sem contornos. Nem uma miragem ao longe? Pessoalmente não vivo sem uma agenda...Às vezes olhar a folhinha me dá alegria: um encontro bom, ou um dia inteiro só pra mim. Em outras folhas, um engarrafamento de garatujas...com mais compromissos do que meu fundamental desejo de liberdade quereria.

Agenda pode ser tormento e prisão. Mas pode ser liberdade, se a gente inventar brechas: em plena tarde da semana, caminhar na calçada; sentar ao sol na varanda do apartamento; deitar na grama do parque ou jardim, por menor que ela seja, e como criança olhar as nuvens, interpretando sua formas...

Ou: recostar para trás na cadeira (pode ser do escritório mesmo) e espiar o céu fora da janela; ir até a sala, esticar-se no sofá com as pernas sobre o braço do próprio, e ouvir música, ver televisão, ler, ler, ler...ou simplesmente não fazer nada. O ócio é uma possibilidade infinita a ser explorada. Não falo de inércia, do desânimo, do vazio melancólico. Falo de viver.

A vida há de rolar por cima da gente, reduzindo a poeirinha inútil quem se esquecer de às vezes parar pra pensar...mas sem se desmontar; olhar em torno ou para dentro: paisagens belas, ou áridas...e escutar a música do universo, o canto do sabiá, a risada da criança no andar de cima; enfim, o chamado da vida que nos convoca de mil formas!

Que nossas agendas (também as interiores) nos permitam muitas vezes a plenitude do nada sorvido como um gole de champanha, celebrando tudo. Sem culpa."


(Lya Luft)


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